Entrevista: Uma maratona para unir música e audiovisual

Pense em uma cena marcante de um filme ou série que gosta. Agora, pense se o mesmo momento da história teria o mesmo impacto sem a trilha sonora que o acompanha. Seria diferente, não é? Para o audiovisual, a música é um elemento muito importante para fazer com que o espectador esteja inserido no mundo que a obra apresenta.

Essa imersão proporcionada pela música é destacada por Raquel Lemos, advogada e consultora especializada em contratos e estratégia negocial na área de entretenimento, economia criativa e mídias digitais. Sócia-fundadora das empresas Lemos Consultoria e Art.is Cultural, ela atua, entre outras áreas, com negociações de direitos autorais e liberação de trilhas para projetos audiovisuais.

Depois de começar no direito societário e operações de investimento, Raquel passou a se envolver e descobriu afinidades com esse universo que conecta a produção musical de artistas brasileiros ao mercado audiovisual do país. Essa proximidade e envolvimento fizeram dela uma importante voz na discussão sobre justas remunerações e o espaço que as mulheres devem ocupar na área.

Nesta entrevista, Raquel fala sobre o trabalho de negociação de direitos autorais, que ela classifica como uma verdadeira maratona; os desafios a serem superados pelo setor; e, claro, os projetos dos quais ela participou ao longo da carreira e considera marcantes.

 

Sebrae Minas - Você é advogada por formação e acabou se especializando em questões relacionadas ao entretenimento e ao audiovisual. Esse direcionamento aconteceu por acaso ou você já tinha afinidade com essas áreas antes?

Raquel Lemos - A atuação na área de entretenimento e mídias digitais foi o meu melhor acidente de carreira, um encontro profissional maravilhoso. A trajetória inicial foi com direito societário e operações de investimento, mas vocacionada para empresas de tecnologia. Então, foi questão de tempo para o mercado fonográfico me atrair e isso aconteceu há quinze anos, quando o digital atravessou a mídia física. Desde o primeiro contato, não ficaram dúvidas de que esse era o espaço que fazia eco: impulsionar a base de negócios da produção brasileira independente, sempre conectada com ambiente digital e inovação. A experiência societária ainda me acompanha e dá reforço técnico às operações cada vez mais recorrentes no segmento de entretenimento.

Sebrae Minas - Você atua na negociação de direitos autorais e liberação de trilhas para projetos. Em que momento de um projeto você é chamada para cuidar nisso?

Raquel Lemos - A cultura da contratação na etapa de planejamento dos projetos audiovisuais, inclusive para ações encadeadas na publicidade, vem crescendo a cada dia. E esse é um lugar tático delicioso de ocupar ao lado e em construção com gravadoras e editoras, sejam elas majors ou independentes. Impensável que fôssemos contratados na etapa de desenvolvimento (concepção, criação e tratamento das salas de roteiro), mas isso vem mudando a cada dia, porque as produtoras, agências de publicidade e marcas estão amadurecendo o processo e compreendendo a cada dia que, mais do que o processo orçamentário, a narrativa musical é uma solução, um servir ao projeto audiovisual. Então, hoje temos a prestação de serviços nas três etapas: no desenvolvimento (momento estratégico), na produção e pós-produção. O momento desta contratação está muito conectado à maturidade executiva do projeto ou da produtora.

Sebrae Minas - Qual é a importância da música, da trilha sonora, para um projeto audiovisual? A reação e as emoções do público seriam as mesmas sem elas?

Raquel Lemos - Não sou sync music supervisor, não é esse meu lugar profissional. Então, responder essa pergunta como consultora de projetos e de produtoras é responder como espectadora e amante de conteúdos. Toda criação é intencional, porque busca dialogar, provocar esse sentir. Aquele momento em que você é dragado por uma cena, em que você é convidado a entrar no mundo do outro, acontece pela música. O audiovisual entende essa textura, mas mesmo empresas maduras no Brasil ainda tateiam o ecossistema fonográfico e isso dificulta o processo negocial e de eleição de repertório.

Sebrae Minas - Em um primeiro momento, pode parecer que o seu trabalho é somente burocrático e contratual, mas ele abrange muitas etapas. Quais são as principais atribuições dessa jornada?

Raquel Lemos - São etapas externas e internas. As externas consistem em confirmar a titularidade das obras e fonogramas; cuidar de parâmetros negociais coerentes e da viabilidade orçamentária dos projetos; alinhar as negociações e termos de uso; cuidar do trânsito e teor das licenças; zelar pela confecção e processamento da cue sheet; e cuidar para que estas cheguem aos titulares e administradores, permitindo a gestão de recebimento destes direitos de gestão coletiva. A etapas internas são igualmente trabalhosas, mas se concentram na chancela de repertório; decisões artísticas e orçamentárias; gestão do orçamento; e uma permanente vigilância para que os usos na etapa de pós-produção não extrapolem o negociado. Projetos seriados bem conduzidos podem nos tomar de 200 a 350 horas de gestão negocial, uma maratona.

Sebrae Minas - O mercado audiovisual cresceu muito nos últimos anos, especialmente com o espaço conquistado pelos games e plataformas de streaming de filmes e séries. Como você analisa o cenário atual desse mercado?

Raquel Lemos - Esse é o mundo que ocupamos hoje: três minutos de vídeo para cada um minuto de vida. Mudamos a maneira de nos comunicar e a pandemia acelerou isso inquestionavelmente. Alta demanda, alto investimento. Os processos de criação, produção e lançamento estão mais ágeis e não sei se estávamos preparados para tamanha demanda. Mas, há muita oportunidade nessa dinâmica de consumo, do short vídeo às experiências imersivas, tudo muito além de pensarmos apenas as séries audiovisuais para plataformas de streaming.

Sebrae Minas - A chegada desses novos serviços e formas de produção trouxe muitas mudanças para essa área? Quais você pode destacar como mais significativas?

Raquel Lemos - Certamente. Além do ritmo de produção impresso, que afeta as escolhas e decisões artísticas, há um claro processo de escolha para as peças promocionais, como teaser e trailers, por exemplo, e o orçamento naturalmente recebe mais cuidado. Além disso, as condições e termos de uso recebem um tratamento mais cuidadoso para o trânsito das licenças musicais, porque os projetos já nascem vocacionados à internacionalização das plataformas de streaming. Gosto dessa troca técnica, do intercâmbio de aprendizado que podemos construir com o ritmo de produção e tomadas de decisão que os players estão a partilhar, esse lugar contínuo de melhoria dos processos.

Sebrae Minas - Os agentes envolvidos em um projeto, das produtoras às gravadoras, com quem as trilhas são negociadas, entendem plenamente, hoje, a importância e o valor da música para um projeto?

Raquel Lemos - Sinto que as gravadoras, majors ou não, e editoras estão passos à frente no entendimento do fazer audiovisual. O caminho inverso, ou seja, as produtoras ainda nos exigem muito carinho e comungar de aprendizado, e não apenas por descompassos orçamentários, mas porque não compreendem exatamente os agentes do mercado fonográfico e seus papeis. Não compreendem, por exemplo, que um compositor, mesmo com sua editora, detém a palavra final sobre sua conveniência naquela negociação, seja orçamento, seja a temática de um projeto ou produto (marca ou serviço) publicitário.

Sebrae Minas - Como convencer os envolvidos em um projeto a fazer uma boa reserva de orçamento e remunerar com justiça em uma negociação de direitos musicais?

Raquel Lemos - Estou num momento de carreira que já não acredito que seja nosso papel como advogados convencer um executivo a qualquer decisão técnica, negocial ou orçamentária. É o orçamento subestimado que vai mostrar àquela equipe executiva seus pontos de falha e necessidades de melhorias, um caminho doloroso, mas é preciso admitir que, sem um planejamento consultivo e na etapa de desenvolvimento, as soluções musicais serão mais custosas, em tempo ou despesas. Os cursos, palestras, conteúdo disponível na web dedicados ao fazer criativo são um convite diário à melhoria técnica. É preciso desejar esses passos e aprimorar fases orçamentárias. Um caminho é divulgarmos projetos que tiveram seu planejamento bem-sucedido. Partilhar acertos costuma ser mais saudável do que tentar convencer o mercado audiovisual de que improvisos não combinam com o mercado que temos hoje.

Sebrae Minas - Que desafios você analisa que ainda precisam ser superados nessas negociações de liberação de músicas ou trilhas e no relacionamento entre os profissionais da área?

Raquel Lemos - Desafio é realmente diminuir as distâncias técnicas e orçamentárias entre as produtoras audiovisuais e as gravadoras/editoras, traçarmos um idioma comum. Partilhar mais experiência para que as agências de publicidade, marcas e produtoras audiovisuais falem o idioma fonográfico com mais acerto e carinho com o acervo musical, do orçamento ao negocial.

Sebrae Minas - Quais, dentre os projetos que você atuou nessa área, destacaria como os mais marcantes, seja pela trilha em si ou pela jornada de trabalho?

Raquel Lemos - Tão difícil, porque a gente vai colecionando projetos tão preciosos e singulares. “Coisa Mais Linda”, pela Netflix, por ter sido cuidadosamente planejado numa construção com muitas mãos, em que pude atuar ao lado das executivas Camila Groch e Marina Hasche, com a direção musical e composições de João Erbetta. Em 2018, um momento em que ter como cliente a Prodigo, tão à frente e em cuidadoso planejamento desde o roteiro, fazendo visitas às gravadoras e editoras para ampliar repertório e possibilidades musicais para a série. A delicadeza e cuidado negocial que construímos ao longo de todo o processo e um projeto musical que tem mais de 10 milhões de plays da primeira temporada. Gosto por isso, o planejamento e alinhamento com o mercado explicam o sucesso da narrativa musical da série, além da plataforma Netflix. Esse é o lugar que acredito: construção de pontes e potencializando ativos intelectuais.

Sebrae Minas - Você atua e se posiciona muito sobre a importância de ter mais mulheres nessa área de direito autoral e em outras do audiovisual? Como você enxerga essa presença e o que você acredita que ainda falta superar?

Raquel Lemos - Fiquei em pausa para essa pergunta. A superar? Remuneração; estruturas sociais que são pensadas pelo e para o masculino, sem qualquer participação ou poder de decisão política ou corporativa das ou para as mulheres; e posições de liderança criativas e executivas. Ainda são tantos os desafios. A verdade é que não sei exatamente como ocupar uma arena profissional sem amparar e ser amparada por outras mulheres. Essa é a presença que tento construir genuinamente na minha rotina, nas relações profissionais em que toco ou sou tocada. Esse é meu lugar profissional: amparar e ser amparada por mulheres, criar ambientes de segurança para esses elos diários.